Tuesday, December 20, 2005

 

À ESPERA DO GÔGÔ


A Dona Cegonha, quando chegou o mês de Abril pôs dois ovos no ninho, um ninho enorme feito de palha e espetos que ela mesmo tinha construído com o seu marido, o senhor Cegonho, em cima de uma torre, meio destruída, numa casa antiga e abandonada. Um mês depois nasceram, vestidos de penugem cinzenta, o Gôgô e o Gágá, muito parecidos, para não dizer iguais, mas a Dona Cegonha nunca teve dúvidas quem era o Gôgô e quem era o Gagá. Já o senhor Cegonho, no princípio, fazia uma certa confusão, só para não fazer má figura é que não dizia que eram iguais e parecidos com ele.

Como havia muitos insectos, rãs e ratos nas redondezas, petiscos que os filhotes da Dona Cegonha muito apreciavam, o Gôgô e o Gágá cresceram a olhos vistos, a penugem transformou-se em penas, brancas e pretas, em pouco tempo, o bico pôs-se de vermelho e as pernas e as patas também. Pouco depois tinham asas para voar.

O Gôgô, desde os primeiros tempos, deu sinais de querer ser um bom aviador. Olhava as outras cegonhas a voar lá no alto em círculo e a planar, quando queriam, a brincar com o vento. O Gôgô não tirava os olhos dos céus mesmo quando chegavam as horas de comer. Comia a olhar para o alto. À noite, antes de adormecer, o Gôgô olhava as estrelas e o seu peito enchia-se de felicidade. Já o Gagá não mexia as patinhas do mesmo sítio, esticava o pescoço e olhava, lá do alto da torre, para o chão, inquieto. A comer, comia de olhos pregados no ninho, para não enjoar.

A Dona Cegonha comentava muitas vezes com o marido e os vizinhos, como podem ser tão diferentes dois irmãos saídos da mesma ninhada! Mas as vizinhas diziam o mesmo.

Um dia, tinha a Dona Cegonha saído de casa para ir buscar comida, o Gôgô bateu as asas de forma tão inquieta e tão desastrada que o Gágá fechou os olhos e encolheu-se o mais possível, se o não tivesse feito o mais certo era ter tombado de lá de cima para o chão. Quando o Gágá se atreveu a abrir os olhos, reparou que o Gôgô andava satisfeitíssimo da vida a dar umas voltas por ali mas não conseguiu manter-se muito tempo a olhar, começou a sentir vertigens.

Quando a Dona Cegonha chegou ao ninho não viu o Gôgô, ficou tão espantada que até deixou cair a comida, espreitou para o chão mas o Gôgô não tinha caído, perguntou: Gágá, o que é que aconteceu ao Gôgô? O Gágá estava sem fala, limitou-se a apontar para o ar e continuou a olhar para o chão.

Preocupada, a Dona Cegonha disse ao marido, e, preocupados os dois, foram perguntar à vizinhança: viram, por acaso, por aí o nosso Gôgô? Ninguém tinha visto.

Ninguém tinha visto, não é bem assim, o Gugu que era um filhote dum ninho vizinho deles, e que tinha mais ou menos a idade do Gôgô e do Gágá, disse que o tinha visto a voar para muito, muito longe, mas ia satisfeito e de boa saúde, não devia ser caso de cuidado, disseram os vizinhos todos.

Passaram os dias e o Gôgô não voltou.

Passaram os mesmos dias e o Gagá não dava mostras de querer sair de casa. Já estava um homenzinho crescido, quase do tamanho dos pais, era até difícil morarem os três no mesmo apartamento, de modo que em vez de uma inquietação, lá em casa, passaram a haver duas: O Gôgô saíra sem dizer para onde ia, o Gágá não arredava pé dali. O senhor Cegonho ameaçou que não lhe traria mais comida, ele que a fosse procurar, tentou ensiná-lo a voar, chegou a comprar-lhe uma vassoura, daquelas com que voam as bruxas, mas nada, nada resultou. E a Dona Cegonha continuou à espera que o Gôgô a viesse visitar a casa e que o Gágá saísse de casa.

Um dia o senhor Cegonho disse à mulher: Cegonha, acho que temos de ir à bruxa!, se queremos que o Gôgô apareça e o Gágá saia de casa.

- Á bruxa, Cegonho?!, mas porque é temos de ir à bruxa? Tu sempre me disseste que não acreditas em bruxas e, pelos vistos, o Gágá também não, ele não se arrisca a voar nem com vassoura…
- Não acredito, não senhor, apesar de muita gente acreditar. Já reparaste que não há conto nem história, hoje em dia, sem bruxas nem monstros voadores? Pois, talvez as bruxas existam e o melhor é irmos à bruxa. Que te parece?

O que é que haveria de parecer se não tinham alternativa? Foram à bruxa, o Gágá, é escusado dizer, ficou em casa.

A casa da bruxa ainda ficava longe dali mas conseguiram encontrá-la com a ajuda de outros voadores que encontraram no caminho.

Entraram. Como está senhora Bruxa? Sejam bem vindos, o que é que os trás por cá?

Foi a Dona Cegonha que adiantou as razões que os tinham levado ali. O Senhor Cegonho, ouviu muito calado, ia abanando a cabeça de vez em quando a dar o seu assentimento à fala da mulher.

Quando a senhora Dona Cegonha terminou de contar à Bruxa o que é que se passava e os preocupava, a Bruxa esteve calada um tempo que pareceu infinito ao casal de Cegonhas. Depois tossiu e falou:

- É a primeira vez que me põem um problema destes, devo confessá-lo.
É que eu tenho a possibilidade de enviar uns raios de força fantástica que permitem fazer regressar o Gôgô a casa mas não permitem fazer voar o Gagá. Tenho outros, de força contrária, que põem o Gágá a voar e o mais certo é nenhum dos dois voltar a casa.

O casal de Cegonhos ouviu e emudeceu.

O senhor Cegonho, tossiu e perguntou: E não pode a senhora Bruxa enviar as duas forças ao mesmo tempo, uma que traga o Gôgô, outra que leve o Gágá?

- Poder, posso, mas não resulta, disse a Bruxa, as forças se actuam ao mesmo tempo anulam-se e nem um volta nem o outro sai e vocês acabavam por gastar o vosso dinheiro sem resultado. Perceberam?

Claro que percebiam perfeitamente, a Bruxa até parecia o Rei Salomão.

Calaram-se, novamente, a Cegonha e o Cegonho, se apoquentados tinham ali chegado mais apoquentados ainda estavam agora depois da consulta. Foi a Bruxa, que tinha outros clientes à espera, que os tirou dos seus pensamentos embrulhados.

- E então, o que é que eu faço?

A Dona Cegonha ainda sugeriu ao marido que era melhor ter os dois no ninho do que os dois a voar sabe-se lá por onde. Mas o senhor Cegonho opôs-se e disse: Pois solte as forças para fazer voar o Gágá e vamos a ver no que é que isto dá.

A Dona Cegonha achou elegante a frase rimada do marido mas cruel. De modo que se seguiu uma discussão que à Bruxa pareceu interminável e convidou-os a discutirem a questão lá fora.

Foi uma discussão longa e muito ponderada cheia de argumentos prós e contras. No final, a Dona Cegonha concordou com o marido: se não havia alternativa, o melhor era que ambos voassem.

A Bruxa assim fez: Soltou as forças do vento, levantou-se um temporal medonho, foi a muito custo que o casal chegou a casa. Em boa verdade à volta voava quase tudo. Só não voava quem acreditava em bruxas.

Claro que quando chegaram ao ninho o Gágá tinha sumido.

Dona Cegonha teve uma comoção tão grande que foi necessário dar-lhe água se não desfalecia. O meu Gagá, onde está o meu Gagá, viram o meu Gágá?

Ninguém tinha visto o Gágá, o temporal era terrível, cada um tinha voado como podia. Ninguém, não é bem assim, o Gugu tinha visto o Gágá a voar de costas!

- De costas? Interrogou aflita a Dona Cegonha. O meu Gágá a voar de costas?!! Interrogava ela insistentemente incrédula.

- É verdade, de costas porque se olhasse para o chão tinha vertigens, foi o que ele disse, continuou o Gugu.

-E para onde ia? Para que lado? – Continuou a querer saber tudo a Dona Cegonha.

- Para além, disse o Gugu e apontou com o dedo, para além, para onde voou o Gôgô.

- Talvez tenha ido ter com o irmão, disse a Dona Cegonha ao marido. Que te parece?

O senhor Cegonho encolheu os ombros a dizer nem sim nem não.

Agora quando perguntam à Dona Cegonha pelos filhos, ela responde: Estão bem. Estou à espera que me apareçam um dia destes por aí com os meus netos.


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O EXEMPLO DA CEGONHA

Uma cegonha, na planície imensa,
longe da sanha de outros animais,
em plena solidão, medita, pensa;
dormita, sonha;
e nada mais!

Peregrina do ar, só busca e espera
Viver tranquila ao sol da Primavera.

João de Deus Ramos
(O Livro da Capa Verde)

Saturday, December 17, 2005

 

O PÍFARO MÁGICO

O pífaro estava arrumadinho no baú dos brinquedos, a um canto, muito tímido, muito sossegado, receoso que alguém lhe tocasse e o quebrasse. Tinha muitos anos e era de barro. E, como se sabe, o barro parte-se facilmente, basta deixar cair um prato ao chão e, plof!, o parto parte-se, não é?

Hoje os brinquedos são muito mais resistentes, podemos deixá-los cair, arrumá-los para o baú em cima uns dos outros e não há problema, não se partem com facilidade. Mas no tempo em que o pífaro foi feito, os brinquedos eram muito mais frágeis, o que quer dizer que, se não tivéssemos cuidado, partiam-se e ficava-se sem brinquedo.

Ora o pífaro, já se disse, era de barro e por isso vivia muito encolhido num canto do baú dos brinquedos do Jack.

Um dia, pelo Natal, ofereceram uma flauta ao Jack. Ele já tinha uma guitarra mas, já se sabe, as pessoas gostam de oferecer coisas umas às outras e às tantas oferecem coisas a mais. Porque se o Jack já tinha um pífaro e uma guitarra, uma flauta passaria, talvez, a estar a mais porque não se pode tocar ao mesmo tempo uma flauta e uma guitarra. Mas o que é que se pode fazer se as pessoas nos continuam a oferecer coisas?

Tanto mais que o Jack, para além do pífaro, que era um antigo brinquedo que já vinha do tempo do seu avô Charlie e com o qual toda a gente tinha muito cuidado para que não se partisse, tinha uma guitarra e uma flauta, já tinha dois xilofones, dois ou três tambores, uma harmónica, um piano eléctrico e outro sem ser eléctrico e muitos outros brinquedos que não eram instrumentos musicais.

O Jack soprou na flauta, achou que tinha um som lindíssimo, mas como tinha ao mesmo tempo recebido cinco automóveis, dois carros de bombeiros, um carro do lixo, uma ambulância, mais duas garagens porque já tinha uma, e várias outras coisas, soprou na flauta dez segundos e em mais três segundos mandou a flauta para o baú para poder brincar também com os outros brinquedos.

Onde é que havia de ir parar a flauta?

Claro, estava-se mesmo a ver, foi parar junto ao pífaro.

O pífaro encolheu-se todo quando viu a flauta cair-lhe quase em cima e suspirou de alívio por ela ter caído ao lado. A flauta era lindíssima, da cor da prata, brilhante, muito vaidosa das suas linhas metálicas. O pífaro de barro, ao lado dela, parecia o parente pobre da mesma família.

- Olá! disse a flauta ao olhar para o pífaro, eu sou a Flauta Mágica!

- Muito prazer em conhecer-te, disse o pífaro, eu sou o Pífaro Mágico!

- Não sabia que havia pífaros mágicos, disse a flauta mágica, só conhecia
flautas mágicas.

- Pois é, disse o pífaro mágico, mas também há pífaros mágicos. Há sempre
muito mais coisas do que aquelas que nós conhecemos.

- Nós, as flautas, somos mágicas porque encantamos serpentes e dragões.
Na Índia, por exemplo, os domadores de serpentes tocam as suas flautas e
as serpentes começam a subir, a subir, a subir ao encontro da música.

- A mim, disseram-me, disse o pífaro, que as serpentes são surdas, não
podem ouvir a música …

- E é verdade que não podem, disse a flauta, e por isso é que a magia é
muito maior, não achas? Repara bem: a flauta toca, a serpente não ouve
mas vê a música a sair da flauta e sobe ao encontro da flauta. Não achas
fantástico?

- É interessante, realmente, concordou o pífaro.

- Mas há mais, disse a flauta muito entusiasmada, as flautas também
encantam os dragões da Rainha da Noite. A Rainha da Noite não queria
que a Princesa casasse com o Príncipe e mandou o dragão combater o
o Príncipe mas este tinha uma flauta mágica e a Rainha da Noite não
sabia. Então o Príncipe, quando já estava completamente apanhado pelo
dragão, que vomitava fogo e fumo por todos os lados, começou a tocar a
flauta mágica…
…Começou a tocar a flauta mágica e … o dragão desfez-se em pedaços!

- Incrível !, exclamou o pífaro admirado com a força da música da flauta.

- Parece incrível mas é verdade!, disse a flauta. E mais: A música da flauta
não só destruiu o dragão como destruiu, sabes quem? …A própria Rainha
da Noite! Ficou tudo em pedaços! Dragão, Rainha da Noite, tudo!

- E depois?, perguntou o pífaro horrorizado com tantos pedaços.

- Depois o Príncipe casou com a Princesa e foram muito felizes, disse a
flauta. É sempre assim que acabam as histórias dos príncipes e das
princesas, não sabias?

- Nós os pífaros somos mais modestos, não servimos para histórias de
príncipes e princesas. Quem compra um pífaro de barro é porque
não tem dinheiro para comprar uma flauta prateada e bonita como tu…

- Achas?, disse a flauta muito feliz com o piropo. Achas mesmo que sou
bonita?

- És lindíssima!, disse o pífaro e a flauta ficou ainda mais contente.
Eu estou velho e, como sou de barro, valho pouco, continuou o pífaro.
Mas já fui mágico, há muitos anos…

Um dia, era véspera de Natal, a senhora Parker quis comprar uma flauta
para o Pai Natal oferecer ao seu filho, o Charlie, uma flauta assim tão linda como tu, talvez nem
tanto. O Charlie tinha cinco anos de idade, era um menino muito bem
comportado, gostava muito de ouvir música, e tinha pedido uma flauta ao
Pai Natal. Mas a senhora Parker não tinha dinheiro suficiente para
comprar a flauta mais bonita que havia na loja, ainda pensou comprar uma
outra flauta menos bonita e mais barata mas o dinheiro, mesmo assim,
não chegava. De modo que comprou um pífaro, comprou-me a mim.

Passou por casa do Pai Natal e disse-lhe:

- O meu filho Charlie gosta muito de música e queria uma flauta para poder
tocar mas eu não tenho dinheiro que chegue para comprar uma flauta e
tive de comprar um pífaro. Espero que ele, de qualquer modo, fique feliz.
Será que o Pai Natal pode ir lá entregar o pífaro amanhã de amanhã cedo?
Mas tem de ser muito cedo porque o Charlie não vai conseguir dormir toda a
noite e vai levantar-se muito cedo! Também não se esqueça de comer uns biscoitinhos e beber
um chocolate que lhe vou deixar para si, Pai Natal!

O Pai Natal ouviu a senhora Parker com toda a atenção e depois disse com
um sorriso: Vá descansada senhora Parker. Esta manhã, antes do Charlie se levantar, vou lá a casa entregar a flauta que o Charlie pediu ao Pai Natal. E não vou, com certeza, esquecer-me de comer os seus biscoitos e beber o chocolate, está cá um frio!
E, realmente, na manhã seguinte, o Charlie levantou-se muito cedo para ver que presentes tinha recebido do Pai Natal. Foi pé ante pé para não acordar ninguém e ficou tão delirante com o que viu, tão excitado que gritou e acordou tudo em redor:

- Uma flauta! O Pai Natal trouxe-me uma flauta! É linda!
E começou a tocar…a tocar…a tocar, não parava de tocar.

- Charlie, dizia-lhe a mãe, pára de tocar, são horas de almoço!
- Charlie, dizia outra vez a mãe, pára de tocar, são horas de jantar!
- Charlie, são horas de ires para a escola!

Mas ele tocava …tocava … O Charlie não tinha outros brinquedos, tinha aquele, só aquele, nunca tivera outro, sentia-se tão feliz com a sua flauta!
E quando parava de tocar, afinal o Charlie também tinha de ir à escola, de tomar o pequeno-almoço, de almoçar, de jantar, colocava a sua flauta com muito cuidado na mesinha de cabeceira, não fosse alguém tocar-lhe a quebrá-la.

A flauta ouvia, ouvia, ouvia o pífaro e começou a ficar intrigada com a história que o pífaro estava a contar.

- Espera aí, interrompeu então a flauta a história do pífaro, tu não disseste que a mãe do Charlie, a senhora Parker, tinha comprado um pífaro, aliás, tu mesmo? Como é que o Pai Natal deu uma flauta ao Charlie e quem agora está aqui és tu, um pífaro?!
- Um pífaro mágico!- recordou o pífaro à flauta.

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