Tuesday, March 14, 2006

 

A HISTÓRIA DO SÍTIO

A HISTÓRIA DO SÍTIO


MyMigu,

Quando há dias te perguntei o que gostarias de ser quando fosses grande, respondeste que querias ser recolhedor de lixo. Não tenho a certeza que seja uma boa escolha mas estou certo de que nunca te faltará trabalho porque haverá cada vez mais lixo neste mundo para recolher. Recordo-me, no entanto, que há uns meses atrás tu preferias ser bombeiro, depois de teres querido ser astronauta. Em que ficamos? Recolhedor de lixo, bombeiro ou astronauta?

Não precisas de responder já. Ainda não tens cinco anos, tens muito tempo para pensar no assunto.

Hoje vou começar a contar-te histórias de reis.

Sabes o que é um rei? Há muitos anos, um rei era um chefe, um homem que decidia o que devia ser feito e o que não podia ser feito, que tinha poderes para dizer o que era permitido e o que era proibido. Era também um guerreiro que comandava outros homens para alargar esses poderes a outras terras e a outros homens.

Hoje, ainda existem reis, mas já não são o que eram. Os reis, actualmente, já não decidem nem comandam. Ainda existem reis porque muitas pessoas gostam de histórias de reis. É difícil explicar porquê, mas lá que gostam é um facto indesmentível.

Alguém se lembrou que é uma boa ideia contar histórias de reis, eu acho que é uma coisa complicada, e pensei: como é que eu descalçaria este par de botas? Como bem sabes, descalçar as botas nem sempre é fácil. Mas, como também sabes, gostamos de a descalçar, não é? Por isso decidi contar para ti e para a Rita essas histórias à minha maneira. Penso que também vocês gostarão de histórias de reis e de rainhas.

Comecemos por Dom Afonso Henriques. Foi o primeiro rei de Portugal e chamaram-lhe o Conquistador.
Eu vou chamar-lhe Afonso, O Conquistador por Deus. Vais saber porquê.







Primeira história



AFONSO, O CONQUISTADOR POR DEUS


Ao Afonso nunca ninguém perguntou o que é que ele queria ser quando fosse grande porque ele sabia que tinha nascido para ser rei.

- Afonso, disse-lhe um dia o senhor Egas, vou ensinar-te a ser rei.

Aprender a ser rei queria dizer, entre outras coisas, aprender a lutar com a espada, uma espada muito pesada, enorme, e proteger-se com um escudo que era uma espécie de um grande prato de ferro com que se protegia o corpo dos ataques dos adversários.

Naqueles tempos o rei era, primeiro que tudo, um chefe guerreiro que defendia com os seus amigos as suas terras e, muitas vezes, atacava outros para conquistar as terras deles.

O senhor Egas era o aio do Afonso. Aio, quer dizer mais ou menos o mesmo que professor e protector.

O senhor Egas não era só professor do Afonso, porque o Afonso, logo que nasceu, foi viver para casa do senhor Egas. O Afonso comia, dormia e brincava em casa do senhor Egas com os filhos dele, além de aprender muitas coisas que o senhor Egas lhe ensinava e que eram importantes para as tarefas que ele iria ter de realizar quando fosse crescido e fosse o rei.

Portanto, mesmo que quisesse, o Afonso não podia ter sido recolhedor de lixo, nem bombeiro, nem astronauta. E não podia, porque além de ter nascido para ser rei, no tempo em que o Afonso nasceu não se recolhia o lixo, não havia bombeiros, nem astronautas. Não havia carros, não havia aviões, não havia comboios, nem televisão, sequer. Nem havia “bagels” nem “muffins”; havia sopa, pão, frutas, carne e peixe. E frango. Já havia frango no tempo em que o Afonso viveu mas do que ele mais gostava era de perdiz e de faisão, de lebre e de veado. Havia muitos animais selvagens nas terras do senhor Egas e o Afonso gostava muito de participar na caça a esses animais selvagens, correndo contente por montes sem fim.

O Afonso costumava brincar com os filhos do senhor Egas e com os filhos de amigos dele. Como naquele tempo não havia muitos brinquedos, eles brincavam sobretudo aos torneios montando cavalinhos de pau a trote pelos campos cobertos de mato e imitando lutas com espadas feitas de madeira. Ganhavam estes jogos de luta aqueles que não caíam dos cavalinhos ou atingiam os outros com as suas espadas. O Afonso era muito forte e ganhava quase sempre.

Um dia o pai do Afonso sentiu-se muito doente e chamou-o para lhe dar um recado:

- Afonso, disse-lhe o pai, estou muito doente e já não tenho forças para continuar a defender as nossas terras. Enquanto fores um menino a tua mãe Teresa tomará conta delas mas logo que tu sejas suficientemente crescido quero que pegues na minha espada e as defendas como eu as defendi até aqui. Prometes, Afonso?
- Pai, prometo, respondeu o Afonso.

E o Afonso voltou para casa do senhor Egas para continuar a aprender como se defendiam e governavam as terras e as pessoas que nelas viviam.

Um dia, já o pai do Afonso tinha morrido, o Afonso soube que sua mãe queria entregar as terras que tinham sido de seu pai a um fidalgo com quem havia, entretanto, casado. Fidalgos eram aqueles que possuíam terras mas não tão grandes como as que pertenciam aos reis.

Naqueles tempos a maior parte das pessoas trabalhava semeando e colhendo os frutos que a terra dava para se alimentarem e vestirem, pelo que aqueles que mais terras possuíam eram mais ricos, mais fortes e respeitados. Daí que a mãe do Afonso pensasse que, juntando as terras que tinham sido do seu primeiro marido com as que pertenciam ao segundo, resultaria uma terra maior e maior seria a sua importância.

O Afonso, no entanto, tinha prometido a seu pai defender as terras que tinham sido dele e estava disposto a cumprir a promessa. Já tinha dezanove anos e sentia-se muito capaz de ganhar qualquer batalha a sério com a mesma facilidade com que ganhava a imitação dos torneios quando era criança em casa do senhor Egas. De modo que, quando quiseram retirar-lhe as terras que tinham sido de seu pai, o Afonso, com a ajuda dos que seus amigos, derrotou numa batalha aqueles que queriam tomar aquilo que lhe pertencia. E disse: A partir de hoje sou rei e senhor das terras que pertenceram a meu pai e lutarei com todas as minhas forças para as aumentar em nome de Deus Nosso Senhor.

E assim nasceu Portugal, um país pequeno situado na Península Ibérica, um rectângulo de território na Europa, em frente do mar, do Oceano Atlântico. Do outro lado do mar, veio a saber-se mais tarde, fica outro Continente, o Continente Americano, onde, naquela altura, viviam pessoas que nada sabiam destas guerras e deste Deus em nome do qual lutava o rei Afonso.

As terras que o rei Afonso herdara de seu pai eram pequenas demais para os seus desejos. Ele queria uma terra maior, uma terra que tivesse a dimensão apropriada a um rei respeitado e poderoso. Olhou à volta e concluiu que não podia aumentar os seus domínios nem para Norte nem para Leste porque nessas paragens eram reis e senhores os seus primos e não seria bom lutar contra eles. De modo que se voltou para Sul porque a Oeste era o mar e o rei Afonso não tinha nascido navegador.

Não era difícil saber para onde era o Sul. De manhã, quando acordava, o Afonso levantava-se e espreguiçava-se a olhar o sol que nascia à sua frente.
O senhor Egas tinha-lhe ensinado, quando ele era criança, que quem se espreguiça ao sol nascer, à esquerda aponta o Norte, e à direita aponta o Sul, sem se esquecer.

A Sul viviam os árabes. Quem eram os árabes?

Os árabes viviam no norte de África, um continente que fica muito perto da Península Ibérica onde morava o rei Afonso e os seus amigos. Um dia os árabes tinham atravessado a faixa estreita de mar que separa o Norte de África do sul da península ibérica e ocupado quase todas as terras da península. Isso já tinha acontecido há cerca de trezentos anos. Mais ou menos na mesma altura outros povos árabes tinham atravessado a península arábica e tinham chegado ao Norte da Índia, uma lugar muito distante.

Na Península Ibérica os árabes tinham conseguido ocupar todo o território até que os povos que aí tinham habitado e fugido para o Norte começaram a reconquistar as terras que tinham perdido. A maior diferença entre estes povos que habitavam a Norte e os que habitavam a Sul era o Deus em que cada um deles acreditava como sendo o Deus verdadeiro. E quando combatiam para conquistar mais terras todos diziam que o faziam por amor ao seu Deus.

- Quem é Deus? perguntou o Afonso ao senhor Egas, um dia quando ainda era criança.

- É muito difícil explicar-te quem é Deus, respondeu o senhor Egas, mas pode, de uma forma muito simples, dizer-se que Deus é como um rei de todos os reis que existem no Universo, isto é, não só dos reis que habitam na terra em que vivemos mas de todas as estrelas que vemos e as que não vemos quando olhamos para o céu, à noite. Entendes, Afonso?

O Afonso achou a explicação um pouco complicada mas aceitou que acima de todos os reis deste mundo houvesse um, e só um, que fosse o rei de todos eles. E que, do mesmo modo que os seus amigos o ajudavam a defender as suas terras e a conquistar outras ele lutasse em nome desse Rei Único com o mesmo fim.

Os árabes lutavam por Deus, os cristãos, e o rei Afonso era cristão, lutavam por Deus. De um lado e do outro diziam querer conquistar mais e mais terras para nelas viverem aqueles que acreditavam em Deus.

Depois de trezentos anos de ocupação pelos árabes das terras que antes pertenciam aos cristãos, o rei Afonso decidiu que era tempo de conquistar as terras perdidas tantos anos antes. Já o pai do rei Afonso tinha vindo de França para ajudar na reconquista das terras perdidas para os árabes. Como recompensa da ajuda prestada tinha recebido as terras que agora eram do rei Afonso.

O rei Afonso era valente e temerário, o que quer dizer que tinha muita força e pouco medo. Com um rei assim todos os seus amigos o seguiam com entusiasmo, nunca deixando de lutar mesmo em situações difíceis.

Brandiam as espadas, e bumba-bumba-bumba, os árabes eram obrigados a recuar para a terra de onde tinham vindo trezentos anos antes.

Com tanta vontade e energia o rei Afonso conseguiu, com a ajuda dos seus amigos, conquistar vários castelos árabes e as suas terras já se estendiam até ao sul daquele rectângulo que na península ibérica fica voltado para o lado onde o sol se deita ao mar, e que se tinha passado a chamar Portugal.

Mas aquelas vitórias do rei Afonso começaram a preocupar os reis árabes da península ibérica e, para o enfrentar melhor, decidiram ir para a luta contra ele todos ao mesmo tempo. E em Ourique travou-se uma grande batalha entre o rei Afonso e cinco reis árabes.

Estava o rei Afonso com os seus amigos a discutir a forma como deveriam enfrentar tanto rei árabe ao mesmo tempo quando apareceu um homem já velho, barba branca muito comprida, vestindo uma túnica branca. O homem velho pediu licença aos guardas para falar com o rei Afonso, o rei Afonso consentiu, e o homem velho disse:

- Rei Afonso, porque razão combates tu os teus irmãos árabes se a terra é suficiente para todos?

O rei Afonso não gostou da pergunta mas respondeu:

- Luto por Deus! Deus único, Deus verdadeiro.

Ouvindo isto o homem velho pediu licença para retirar-se.

Não muito longe dali estava o acampamento dos reis árabes e os cinco reis discutiam entre si os planos para derrotarem o rei Afonso e, deste modo, manterem as terras em sua posse. Já era muito tarde quando apareceu um homem velho, de barba branca e comprida, vestindo uma túnica branca que pediu aos guardas para falar com os cinco reis.

Os reis aceitaram ouvir o homem velho e o homem velho disse-lhes:

- Reis árabes, porque razão lutam vocês contra o vosso irmão rei Afonso se a terra é suficiente para todos?

- Lutamos por Deus! Deus único, Deus verdadeiro.

Ouvindo isto o homem velho disse-lhes:

- A vossa luta é escusada porque também o rei Afonso luta pelo mesmo Deus, Deus único, Deus verdadeiro. Porque não recolhem as vossas armas e não distribuem entre vós as terras que são vastas e suficientes para todos?

Dizendo isto o homem velho retirou-se. Nem os reis árabes nem o rei Afonso aceitaram a sugestão do homem velho e o rei Afonso venceu a batalha de Ourique contra os cinco reis árabes.

Com tanta vontade de vencer, tanto esforço, e alguma sorte, o rei Afonso ao fim de alguns anos tinha forçado quase todos os árabes a voltarem para o Norte de África. Portugal continuava a ser um País pequeno mas tinha aumentado muito o seu tamanho graças à capacidade do rei Afonso e dos seus amigos.

Entretanto, no outro lado do mundo, os árabes que tinham chegado ao Norte da Índia na mesma época em que ocuparam a península ibérica, estavam a aumentar a sua ocupação da Índia quando começaram a ser obrigados a sair da península ibérica. E por lá continuaram durante muitos séculos.

Também por lá apareceu o homem velho, das longas barbas brancas e túnica branca dizendo aos de um lado e do outro:

- A vossa luta é escusada porque todos se batem pelo mesmo Rei Único mas não há, em todo o Universo, visível e invisível, nada que não pertença ao Rei Único. A vossa luta é contra a vontade de Deus e não por Ele.

Passados quase mil anos, o homem velho, das barbas longas e túnica branca continua ainda a ser visto um pouco por toda a parte do mundo a dizer o mesmo.

Contra a vontade de Deus e não por Ele, repete continuamente o homem velho.

Um dia virá em que os homens acreditarão no homem velho das longas barbas brancas e o mundo será melhor.


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