Monday, October 31, 2005

 

O ASTRONAUTA MIGUEL

CONTOS PARA MY MIGUEL

contados pelo Rui





Há dias chegou uma carta pelo correio. Quase todos os dias chegam cartas pelo correio para a Mami e para o Bapi, às vezes também chegam cartas para o Miguel. Desta vez, porém, a carta para o Miguel era muito especial.

Muito especial porque vinha, imaginem!, nem mais nem menos do que da Base de Lançamento de Naves Espaciais em Cape Caneveral!

Toda a gente sabe que o Miguel adora as naves espaciais e que sonha em participar numa dessas fantásticas viagens pelo espaço. Aliás, muitos meninos da idade do Miguel gostariam viajar numa nave espacial, quem é que não gostaria, quem?

O Miguel já andou muitas vezes de avião, pode mesmo dizer-se que o Miguel é muito viajado. Poucos meninos da idade do Miguel terão já andado tantas horas de avião. O Miguel, aliás, adora andar de avião.

Mas andar de avião é uma coisa, fazer uma viagem ao espaço interplanetário outra coisa muito diferente. Quando se anda de avião não nos afastamos mais do que uns 30 mil pés da Terra, o planeta onde vivemos. Claro que 30 mil pés já é uma altura considerável, uma distância mais ou menos igual aquela separa a casa do Miguel do escritório onde trabalha a Mami.

Uma viagem numa nave espacial é outra coisa. A nave afasta-se da Terra até uma altitude que permite ver a Terra toda, mesmo toda, lá de cima. É uma vista fantástica. De lá de cima pode ver-se a Terra a rodar como uma bola suspensa no espaço. É assim uma vista mais ou menos parecida com aquela que temos da Lua quando a observamos a partir da Terra. Só que mais bonita porque a Terra é colorida enquanto a Lua é pintada a cinzento, ás vezes a vermelho quando é fim do dia. A Terra, vista do espaço, é toda azul.




Pois o Miguel recebeu uma carta a convidá-lo para viajar até ao espaço e o Miguel aceitou. A Mami não queria que ele fosse, o Miguel ainda é muito pequenino, pensa ela, o Miguel já é muito crescido, pensa o Miguel.
De modo que o Miguel foi mesmo viajar no Space Shuttle.
A partida foi um bocado confusa porque o Miguel não queria levar o fato pressurizado nem o capacete transparente. Imaginem que o Miguel começou por não querer sequer calçar as meias!

Tinha-se gerado uma enorme confusão, uma coisa nunca vista na Base de Lançamento de Naves Espaciais, tens que vestir isto e mais isto e mais isto, não quero vestir nada disso, vou muito bem assim, quando se aproximou um senhor muito alto, vestido de fato pressurizado, o capacete transparente de baixo do braço esquerdo. Estendeu a mão direita ao Miguel para o cumprimentar:

- Sou o Comandante John AirLight, responsável por esta expedição!
O Miguel, que não estava a chuchar o dedo da mão direita, correspondeu imediatamente e estendeu-lhe a mão.
- Muito prazer em conhece-lo, Comandante. O meu nome é Miguel Fonseca Mazumder e fui convidado para fazer parte desta expedição.
- Muito prazer em conhecer-te, Miguel. Podes tratar-me por John. O que é que se passa aqui? Qual o problema? Em que posso ser-te útil?
- Não há problema nenhum Jonh, o que acontece é que eu preferia viajar apenas de T-shirt e jeans e descalço, se for possível, mas não me querem deixar entrar se não vestir essas coisas todas. Detesto roupas largas, John, e os meus pés são alérgicos a apertos, mesmo ligeiros. Só isso.
O Comandante, que não esperava por tão original pretensão, esteve largos minutos a pensar. Depois puxou por uma cadeira, sentou-se ao lado do Miguel e explicou-lhe:
- Miguel, nós vamos para uma expedição extraordinária, ainda não é vulgar as pessoas deslocarem-se para fora da órbita terrestre, são muito poucos aqueles que têm a oportunidade de voar até lá acima tão alto. Mas essa oportunidade também envolve alguns riscos e algumas exigências.
- Fora da órbita da Terra não há gravidade...
- O que é gravidade? perguntou o Miguel.
- A gravidade é a força que nos prende à Terra. Se não existisse gravidade andaríamos todos perdidos no espaço, ninguém encontraria ninguém, a vida na Terra não seria possível, tu não serias o Miguel, eu não seria o John. Por outro lado, não existe o ar que necessitamos para respirar. Compreendes agora porque temos de usar umas roupas tão desconfortáveis e usar um capacete tão ridículo? Bem sabes que também não é possível para nós, humanos, mergulhar no mar por períodos muito longos sem vestir roupa apropriada e usar garrafas de oxigénio que nos permitem continuar a respirar. Já deves ter visto que assim é quando, na televisão, transmitem programas sobre a vida submarina, isto é, a vida dos peixes no mar. Mesmo para sobreviver no Pólo Norte ou no Pólo Sul da Terra, sempre cobertos de neve, é necessário vestir roupas que nos protejam de temperaturas tão frias. Compreendes agora porque temos que ir equipados para sobreviver num ambiente diferente daquele em que habitualmente vivemos?

O Miguel tinha compreendido que para viajar no espaço onde não existe a força da gravidade que nos prende ao sítio onde nos encontramos nem o ar que respiramos era mesmo preciso ir vestido convenientemente, e começou a calçar as meias.

- Espero vê-lo a bordo dentro de uma hora, Miguel, disse o Comandante. Vestir o fato de astronauta, e o Miguel ia ser um astronauta, é uma coisa muito complicada, não se compara nada com barafunda matinal em casa, de manhã, antes de sair para o Day-Care.
- Lá estarei, John, sem falta, disse o Miguel a acabar de calçar as meias.



Quando o Miguel estava, finalmente, equipado para poder entrar na Space Shuttle alguém lhe perguntou o que é que ele tinha nas mãos. O Miguel tinha trazido consigo uma nave espacial em miniatura, um brinquedo que o Pai Natal lhe tinha oferecido, e supunha poder levá-lo consigo durante a viagem em órbita à volta da Terra. Mas não podia. E não podia porque tudo o que é transportado numa nave espacial é cuidadosamente calculado e controlado. Nada, mas mesmo nada pode ser levado para bordo que não tenha sido previsto como estritamente necessário pelos engenheiros e cientistas da NASA.

- E o que é a NASA? perguntou o Miguel.
- A NASA é a organização dos Estados Unidos da América para o desenvolvimento dos programas de exploração espacial. Aliás, foi a NASA quem te convidou.
- Mas porque é que me convidou a NASA a mim e não outro puto qualquer?
- Boa pergunta e já estávamos a estranhar que não a tivesses feito antes. As viagens espaciais servem também para os cientistas da NASA avaliarem como é que as pessoas se comportam quando têm que viver de forma completamente diferente daquela em que vivem na Terra. Precisam de saber, por exemplo, como é que reagem as pessoas à falta da força da gravidade. Até agora essas experiências foram efectuadas com pessoas crescidas, com adultos. Decidiram agora fazer essas experiências com crianças. Para o fazerem pediram às companhias de aviação que lhes indicassem nomes de crianças muito viajadas. Como tu, Miguel, já voaste duas vezes entre os Estados Unidos da América e a Índia e quatro vezes entre os Estados Unidos e a Europa, os cientistas da NASA concluíram que tu tens já muitas horas de voo em aviões e terás, portanto, boas condições para efectuar este voo no espaço interplanetário.
- E o que é o espaço interplanetário? perguntou o Miguel?
- O espaço interplanetário é o que fica fora da força da gravidade da Terra, fica tão longe da Terra que os braços da gravidade da Terra já não chegam lá. Repara: Tu tens dois braços, certo? Com esses braços tu consegues apanhar o que está perto mas não consegues agarrar o que está longe. A Terra também tem braços, só que não se vêm. Chamam-lhe gravidade e chegam muito longe mas não chegam a todo o lado. O espaço onde a força da gravidade dos planetas, como a Terra, não chega, chama-se espaço interplanetário, isto é, o espaço interplanetário é o espaço entre os planetas.
- E o que são planetas? perguntou mais uma vez o Miguel.
- Planetas são bolas muito, muito grandes que andam no espaço à volta das estrelas. A Terra é um planeta que anda à volta do Sol, que é uma Estrela. Se olhares para o teto do teu quarto consegues ver cópias em ponto pequeno dos planetas que andam à volta do Sol. Tu sabes o que é o Sol, claro que sabes. O Sol é muito nosso amigo. Sem ele não poderíamos viver na Terra. É o Sol que nos dá luz e calor para vivermos. Mas não podemos olhar directamente para ele, se o fizermos podemos ferir a nossa vista. Bom, temos de embarcar, não podemos atrasar-nos mais. A NASA tem um programa para o lançamento que tem de ser respeitado sem nenhuma falha
- Posso comer bagels dentro da nave espacial? perguntou ainda o Miguel à medida que se aproximavam da entrada da nave espacial.
- Até agora não era possível mas, desta vez, uma das experiências que os cientistas querem fazer, é saber como é que se comporta o sistema digestivo comendo alimentos normais. Vais ter, portanto, bagels ao pequeno almoço, macaroni com queijo ao almoço, frango com arroz ao jantar, gelado de baunilha, creme de maçã, bananas e muitas outras coisas. E leite e água e sumo de maçã e sumo de laranja para beberes. Cheers Miguel!

O Miguel ia para dizer Cheers! mas reparou que não tinha nenhum copo com sumo para brindar e perguntou:

- Hei! Onde é que está o meu sumo?
- Aqui mesmo, responderam-lhe, ao mesmo tempo que lhe passavam uma embalagem de maçã.
- Obrigado. Cheers John! disse o Miguel ao Comandante, que o esperava à entrada da nave espacial.
- Cheers Miguel! disse o Comandante levantando o seu copo de sumo de laranja. Bem vindo a bordo!
- Boa viagem, John! Há, por acaso, um sítio onde eu possa fazer uma sesta a bordo? Com roupa tão pesada começo a ficar com sono. Já agora, mais uma pergunta: Posso descalçar as botas enquanto durmo? E as meias, posso tirar também as meias?

Não, não é permitido tirar o fato a bordo. Nem descalçar os sapatos, nem tirar as meias. Mesmo para dormir os astronautas têm de manter-se vestidos com aquela roupa que é feita propositadamente para viverem eles a bordo, garantindo-lhes ao mesmo tempo alguma comodidade.


Quando o Miguel entrou na nave acompanhado do Comandante sentiu vontade de voltar para trás, mas controlou-se. A nave por dentro é uma sala muito pequena, nada que se compare com a sala que há em casa do Miguel. É redonda e cada astronauta tem de ocupar uma posição e dessa posição só pode sair para ensaiar passeios no espaço interior e no exterior. Os passeios no exterior da nave são feitos para observar o comportamento das estruturas da nave ou para passar de uma nave para outra.
Naquela missão iam cinco astronautas, portanto mais três para além do Miguel e do Comandante. Um desses três era engenheiro, o Bill Engine, responsável pelo funcionamento dos motores da nave, outro era cientista, o Bob Data, para fazer observações dos movimentos a bordo e outro era médico, o Doctor Pressure, para auscultar o estado de saúde de todos. O Comandante fez as apresentações e ia explicando estas coisas ao Miguel. O Miguel correspondia sempre estendendo a mão direita:
- Miguel, muito prazer em conhece-lo.

Quando a hora da partida se aproximou fecharam a porta e avisaram a tripulação de que tudo se encontrava pronto para a descolagem. Todas as instruções vinham do Centro de Controlo de Operações, uma sala com muitos computadores e muitos écrans semelhantes aos écrans dos televisores.

Todos os astronautas cumpriram à risca as instruções dadas e aguardaram o sinal de partida.

Ouviu-se depois, claramente: Dez, Nove, Oito, Sete, Seis, Cinco, Quatro, Três, Dois, Um, Descolar!

Quando acabou de ser gritado Descolar! sentiu-se perfeitamente a bordo que instantaneamente o Space Shuttle já se encontrava com as suas turbinas no máximo de propulsão. VRRRUUUUUUUUMMMMMMM! E, boa viagem a todos que aqui vamos nós!

Passados minutos sentiu-se uma aceleração na nave ocupada pelos astronautas. Conforme previsto, atingida a distância crítica, o foguetão que havia transportado a nave até ali, desprendeu-se e deixou o Space Shuttle a voar sozinho no espaço. Uma maravilha!

A pouco e pouco o Miguel foi-se habituando a viver naquelas condições. O que mais custava era não poder tomar banho à noite, antes de adormecer, numa banheira como aquela que há em casa e de que o Miguel tanto gosta para chapinhar nela.
Chapinhar na banheira faz lembrar ao Miguel o Verão e a praia, quando ele e a Rita vão a Portugal a casa dos avós que vivem numa casa perto da praia. O Verão é a melhor estação do ano, pensa o Miguel. No Verão podemos andar sem meias nem sapatos, podemos andar quase sem nada. Na praia toda a gente anda quase sem nada. É bom não ter nada a prender-nos os movimentos, sentir o calor do Sol directamente na pele, a frescura da água no corpo, o sal da água do mar.

Durante alguns momentos o Miguel sentiu um grande desejo de se ver livre daquela nave espacial com que tanto tinha sonhado e dar um salto dali mesmo para a praia. Mas depois pensou: Fui convidado para uma experiência, devo levá-la até ao fim. Além disso de nada me serve querer coisas impossíveis neste momento. O Comandante, o John, não iria terminar esta missão só porque eu lhe dissesse: Olha John, estou a ficar saturado disto e quero voltar para casa, importas-te de voltar para a Terra e já agora deixar-me na praia junto à casa dos meus avós? Claro que não seria possível, uma missão é uma missão, deve ser levada até ao fim conforme os cientistas previram. Só deste modo se pode saber o que é acontece quando um puto viaja a bordo de uma nave espacial. Se come mais, se come menos, se passa a gostar de peixe e a comer sopa, se continua a fazer xixi regularmente, essas coisas a que os cientistas chamam experiências.

- John, hoje queria ir lá fora da nave fazer a inspecção à fuselagem, disse o Miguel ao Comandante.

O Comandante ficou, mais uma vez, sem saber como responder ao Miguel. Quando o Miguel lhe disse que não queria vestir meias, o Comandante achou a ideia bizarra mas conseguiu alguns bons argumentos para o convencer a vestir-se de forma adequada. Se o não fizesse não poderia embarcar na nave espacial e o Miguel queria muito fazer aquela viagem. Mas agora, que razões poderia ele arranjar para dizer não a um pedido que o Miguel lhe fazia e que poderia ser um sucesso falado em todo o mundo?

“Miguel, um puto de três anos e meio, passeou-se no espaço durante cinco minutos!”. Com fotografia e tudo, seria arrebatador!

O Miguel já tinha ensaiado muitas vezes, durante os dois primeiros dias, passeios dentro da nave. Como não havia gravidade o Miguel e os outros astronautas logo que se desprendiam dos seus lugares flutuavam no ar. Era uma coisa esquisita mas maravilhosa! Semelhante a mergulhar na água mas não se sentir envolvido por nada se não por aquelas roupas malucas.
Que pena não poder dar aqueles passeios no ar sem sapatos nem meias!, com T-shirt, vá lá, para não apanhar uma constipação a bordo.

Uma vez por dia, se é que assim se pode dizer, porque lá em cima, lá bem em cima, não há noite nem dia porque o Sol está sempre visível, um dos astronautas saía da nave bem agarrado por um cordão e ia até ao exterior da nave passear-se no espaço e observar como se encontravam as estruturas da fuselagem da nave espacial. Vinham sempre radiantes quando voltavam à nave. Era uma coisa maravilhosa, ver a Terra lá em baixo a rodar, e uma sensação única de liberdade total onde tudo é silêncio e tudo parece parado. Já tinham pensado nisso?

O Comandante pensou um bocado de tempo acerca do pedido do Miguel e decidiu consultar os outros membros da tripulação.
O Doctor Pressure levantou algumas dúvidas. O Comandante resolveu, então, consultar o Centro de Controla de Operações que foi completamente apanhado de surpresa. Ninguém tinha pensado em tal hipótese. Mas todos ficaram ansiosos por saber quais os riscos que se poderiam correr e pediram ao Comandante que aguardasse até ao dia seguinte por uma resposta.

O Miguel recebeu a informação do Centro de Controlo de Operações com alguma ansiedade e disse ao Comandante: John, acho que vou fazer xixi!


Não estava previsto que o Miguel fizesse xixi aquela hora e o Doctor Pressure abanou a cabeça cochichando para o Comandante:

- Comandante, deve avisar a base. Todas as alterações devem ser comunicadas ao Centro de Controlo de Operações para avaliação correcta da situação.

O Comandante não gostou nada, mas mesmo nada, que o Doctor Pressure o tivesse alertado para uma instrução que ele, Comandante, conhecia perfeitamente, de mais a mais à frente de todos os membros da tripulação, aliás não o poderia ter feito de outro modo, viviam todos no mesmo pequeno espaço. Mas não tinha alternativa, tinha mesmo de informar o Centro de Controlo de Operações.

No dia seguinte foi recebida a resposta: Afirmativo, disseram do Centro, o Miguel pode ir ao exterior durante vinte e cinco minutos.
Quando tal ouviu o Miguel pediu autorização ao Comandante para fazer outra vez xixi. Não estava programado mas o Comandante nem olhou para o Doctor Pressure e disse ao Miguel: Afirmativo, Miguel, podes fazer xixi sempre que quiseres. Perante tanta disponibilidade o Miguel aproveitou para perguntar: E os sapatos, posso tirar os sapatos?

Claro que não podia e o Miguel sabia isso muito bem, mas agora quando o Miguel falava no assunto todos se riam e o Miguel ficava satisfeitíssimo por alegrar o ambiente. O Doctor Pressure foi o único que não gostou da piada.

À hora de jantar o Miguel estava excitadíssimo, no dia seguinte ia ser ele a passear-se no espaço e observar a fuselagem. Ele só esperava que tudo estivesse em ordem porque assim teria mais tempo para saborear o passeio no espaço fora da nave. Quando o Comandante disse: É hora de jantar, o Miguel ou não ouviu ou não fez caso e continuou a dar saltos e mais saltos no espaço interior. Lamentavelmente, durante a execução de uma cambalhota, bateu com a bota na cabeça do Doctor Pressure que tinha tirado o capacete transparente para poder jantar. E fez-lhe um arranhão considerável, provocando um grande embaraço entre os membros da tripulação. O Doctor Pressure era tido como uma pessoa muito rigorosa e menos dado a momentos de descontracção, mas todos ficaram preocupados com o sucedido. O Miguel apresentou imediatamente desculpas e parou as suas evoluções. Ao jantar portou-se muito bem, comeu tudo e fez Cheers! com o Doctor Pressure. O Doctor Pressure correspondeu sempre mas nunca sorriu sequer. O Comandante estava bem disposto e procurava animar o ambiente contando anedotas que o Miguel não conseguiu perceber. Então o Comandante perguntou ao Miguel:

- Percebeste esta? O Miguel respondeu:
- Não.
- Então porque te ris? perguntou de novo o Comandante.
- Porque estamos todos contentes, respondeu o Miguel.

Quando se recolheu ao seu espaço para dormir, o Miguel não conseguia deixar de pensar no arranhão que tinha feito ao Doctor Pressure e das consequências que a sua leviandade poderia provocar. Como iria evoluir uma ferida provocada por um sapato, dentro da nave espacial? Mas como no dia seguinte teria que sair para o exterior devia dormir uma boa soneca.
Tentou então arranjar uma boa razão para se tranquilizar e pensou:
“Afinal eu bem tinha insistido que me deixassem tirar as botas...”


Quando o Miguel saiu para o exterior da nave julgou que ainda se encontrava dentro dela: livre a flutuar no ar. Só quando olhou à sua volta é que concluiu que já estava completamente cá fora e que o cordão umbilical que o ligava ao Space Shuttle era o único meio que o ligava à nave. Fantástico! Fantástico Mil vezes fantástico! Yahoo! Yahoo! Yhaoo!

A cada Yhaoo! Yhaoo! Yhaoo! correspondia uma tripla pirueta no ar. Que não acabavam mas não estavam previstas no programa. O Comandante tentou entrar em contacto com o exterior mas sem resultado: O Miguel continuava com as suas piruetas e o Comandante pensou que o caso poderia ser sério porque talvez o Miguel não conseguisse agora estabilizar os movimentos. O Comandante começou, então, a abanar a cabeça sem saber o que poderia fazer; o Doctor Pressure mordia os lábios e bufava; o Bill Engine estava ansioso e muito vermelho e o Doctor Pressure pensou que ia ter trabalho com ele; o Bob Data não parava de bater no teclado do computador.

De repente, chegaram instruções do Centro de Controlo de Operações. O Miguel deveria ser intimado a cessar as piruetas e a voltar para o interior. Já era esperado, pensou o Doctor Pressure. O que é que vou poder fazer, interrogava-se, sem parar, o Comandante. Ele já tinha tentado entrar em contacto com o Miguel mas sem sucesso. A continuar assim temos que voltar antecipadamente à base, pensava Bill Engine. O Bob Data continuava a bater calmamente no teclado do computador.

Milagre! Milagre! gritou o Comandante quando viu que o Miguel tinha cessado as piruetas e estava agora a inspeccionar, muito profissionalmente, a fuselagem. De vez em quando parava o trabalho de inspecção e permanecia encantado a olhar a Terra, muito pequenina a rodar lá em baixo.

À hora prevista o Miguel estava de volta à nave, os programas são para se cumprir e o Miguel é um puto muito responsável, faz-se o que se deve fazer, não é? Ainda lhe apeteceu dar umas piruetas no ar mas eram horas de regresso e ele não podia comprometer os objectivos da missão.

Logo que o Miguel acabou de reentrar na nave o Doctor Pressure notou que algo de anormal tinha acontecido na saída do Miguel para o exterior. O Miguel não trazia botas e o Comandante também depressa se apercebeu disso. O Bill Engine foi o único que não reparou na falta de botas porque estava muito mais ansioso por saber em que condições se encontrava a fuselagem. Era ele que fazia as primeiras perguntas a quem saía para o exterior. As condições no interior da nave dependem muito das condições no exterior e só uma inspecção regular bem feita pode detectar anomalias, se as houver, na fuselagem. Ao Bob Data competia transmitir para o Centro de Controlo de Operações o relatório do inspector de serviço, naquele dia tinha sido o Miguel.

De modo que embora o Comandante estivesse muito ansioso por saber onde paravam as botas do Miguel e o Doctor Pressure gostasse muito de saber se os pés do Miguel teriam sofrido alguma lesão por se terem estado desprotegidos durante tanto tempo no espaço, não tiveram outro remédio se não aguardarem que o Bill Engine fizesse as perguntas que entendesse.

Escusado será dizer que o Bill Engine era um chato a fazer perguntas, queria saber sempre tudo tim-tim-por-tim-tim mas normalmente ninguém se preocupava porque a ida ao exterior era uma visita de inspecção, pouco mais perguntas havia a fazer, as observações médicas são automáticas, nem é preciso fazer grandes perguntas e o Bob Data não faz perguntas só regista as respostas.

O Miguel respondeu a todas as questões do Bill Engine, sem hesitações nem gaguejar, aspecto que não escapou à observação do Doctor Pressure pois o Miguel quando quer falar muito depressa tropeça nas palavras e por isso parece que gagueja. Ao fim de quase uma hora a responder por uma inspecção que tinha durado vinte minutos o Miguel passou a responder ao Comandante. O Comandante, diga-se desde já, tinha ficado de boca aberta desde que vira o Miguel reentrar na nave sem botas e ainda não a tinha fechado. Uma hora de boca aberta é notável, convenhamos, só não entrou mosca porque não há moscas no espaço, sabiam?

O Comandante fechou, finalmente, a boca e passou às questões. Antes, porém, fez Han! -Han! talvez para limpar o catarro ou acordar do pesadelo.

- Miguel, começou o Comandante por dizer de forma muito séria enquanto o Doctor Pressure esboçava o primeiro sorriso das últimas vinte e quatro horas, como sabes, fazes parte de uma missão que é noticiada em todo o mundo: jornais, televisões, rádios, toda a gente tem os olhos postos em nós. Tu és ainda pequenino mas, sabes, a nossa missão é muito importante. Fiquei muito triste que tu tivesses aproveitado a saída ao exterior da nave para te divertires e perderes as botas. Estávamos preocupadíssimos contigo, aqui dentro e no Centro de Controlo de Operações, tentei várias vezes entrar em contacto contigo sem conseguir, enquanto tu davas piruetas e mais piruetas no ar e gritavas Yhaoo! -Yhaoo!-Yhaoo! Supus que nunca mais terminasses.

O Miguel ouviu o Comandante com muita atenção e depois respondeu:

- John, bem sabes que se deres uma pirueta no espaço é difícil parares o movimento. À saída da nave as minhas botas devem ter-se enredado no cabo de ligação, desequilibrei-me e comecei a rodopiar. Gritava Yhaoo! -Yhaoo! -Yhaoo! para não me assustar. Às tantas soltaram-se-me as botas e consegui reequilibrar-me e fazer a inspecção. Não penso que tenha corrido assim tão mal. E umas botas não são assim tão importantes, não achas?

O Comandante sentou-se a pensar e passou o Miguel ao Doctor Pressure para perguntas. O Doctor Pressure estava anormalmente excitado e disse ao Miguel que tirasse as meias para lhe inspeccionar os pés. O Miguel olhou para o Comandante ao mesmo tempo que tirava as meias. O Comandante pareceu, de repente, muito interessado nos pés do Miguel e aproximou-se. O Bob Data não parava de bater no teclado.

Os pés, disse o Doctor Pressure de forma muito ponderada, não apresentam aparentemente quaisquer lesões mas teremos que aguardar 48 horas para poder estabelecer um diagnóstico preciso. Até lá o paciente deve andar descalço. Foi o que o Miguel quis ouvir. O Bob Data enviou imediatamente relatório para o Centro de Controlo de Operações. O Bill Engine, entretanto, tinha aproveitado para fazer uma soneca de olhos abertos porque não era permitido dormir aquela hora de olhos fechados.

Nesse dia e nos dias seguintes o Miguel estava satisfeitíssimo, não só porque tinha realizado com sucesso uma tarefa importante para a missão mas, sobretudo, porque não tinha que trazer dentro de casa aquelas botas malucas e aquelas meias incómodas. Até comeu melhor ao pequeno- almoço. Por outro lado, em todo o mundo se falava da façanha do puto que tinha voado sozinho vinte e cinco minutos no espaço. O avô dele, orgulhoso do feito do neto, pensava, que pena não ter eu a idade dele para passear também no espaço!

Passadas as quarenta e oito horas, estabelecidas pelo Doctor Pressure para o relatório definitivo, o Miguel foi novamente à consulta. O Doctor Pressure olhou e remirou os pés do Miguel, cheirou até, e depois disse ao Bob Data para escrever o seguinte:

“Examinei em detalhe ambos os pés do Miguel, tanto o direito como o esquerdo, isto é os dois pés, de um lado e do outro, portanto, e não encontrei sequelas da falta de protecção provocada pela ausência de botas durante a viagem do citado astronauta, realizada há quarenta e oito horas. Doctor Pressure”.

O Bob Data enviou de imediato o relatório ao Centro de Controlo de Operações mas, pelos vistos, o relatório do Doctor Pressure não era suficientemente claro porque perguntavam se o diagnóstico também se referia à falta de meias.

O Comandante fez questão de responder: “Testámos a falta de botas. Podemos testar a falta de meias em nova saída do astronauta Miguel ao exterior. Escuto”

Respondeu o Centro de Controlo de Operações: “Afirmativo. Informem o astronauta Miguel que não pode tirar mais nada.”

O Comandante ficou satisfeitíssimo e o Doctor Pressure disse que a missão tinha dado dois passos importantes no avanço da ciência, sem meias nem sapatos. Também acho, disse o Comandante, um passo sem botas outro passo sem botas nem meias. Viva o astronauta Miguel! Todos os outros disseram viva o Miguel, até o Bill Engine que, entretanto, tinha acordado.


A segunda saída do astronauta Miguel para o espaço, fora da nave espacial, foi um sucesso enorme. Os jornais não falavam de outra coisa, as televisões só transmitiam imagens da missão, as rádios entrevistavam os pais do Miguel, os avós do Miguel, a irmã do Miguel, os amigos do Miguel, as professoras do Miguel, os vizinhos do Miguel, os conhecidos do Miguel, os conhecidos dos conhecidos do Miguel, os conhecidos dos conhecidos dos conhecidos do Miguel, até perguntaram à Mrss. Karmer, a vizinha do lado esquerdo que estava de partida para a Flórida e voltava para casa depois de passear o cão.

O Miguel? Conheço muito bem, é um menino muito bonito e muito educado. Anda sempre muito bem vestido, sempre muito bem calçado, acho que nunca anda descalço, a não ser na praia, evidentemente. Se perdeu as botas no espaço foi involuntariamente. Uma pena. Mas deram-se dois passos importantes na ciência, segundo ouvi dizer. Que importa se foram dados descalços?






Reston, 09/01/2005

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